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Foto do escritorGislene Ramos

E se o Racismo fosse um prédio? – IMPLODIR É PRECISO!

Artigo que pretende discutir acerca do racismo estrutural brasileiro e como suas estruturas se relacionam construindo suporte para as manutenções das relações de poder e opressão. Ao utilizar a metáfora da demolição através da implosão, compara-se o racismo estrutural como sendo um edifício de grande porte e para o seu enfrentamento seja necessário “atacar” as suas bases simultaneamente, ou seja, as suas estruturas.


Racismo estrutural, estruturas, enfrentamento


O Racismo não nasceu no Brasil, evidentemente. No entanto, o país que abriga um dos maiores contingente de população negra fora do continente africano carrega em seu DNA o sistema de opressão que o acompanha em seus mais de quinhentos anos. Um elemento estrutural e estruturante das relações de poder e opressão, que se mantém sendo retroalimentado.


Ao longo de gerações, a sociedade brasileira acompanhou processos de relativas mudanças no que se diz respeito ao sistema de opressão. Desde a colonização, o escravismo brasileiro concentrou características próprias, diferentes inclusive de outros países, cuja exploração do trabalho escravo também foi elemento colonizador.


Um grande exemplo é a Abolição da escravatura, ocorrida em 1888, um marco histórico, porém simbólico apenas, pois estudos revelam que o trabalho escravo no país perpetuou por muitos anos e, em alguns casos, manteve-se sob nova roupagem.


O autor Clóvis Moura trouxe para o centro do debate a questão do racismo ao analisar a constituição do estado brasileiro e suas particularidades. Moura revela que a abolição teve um caráter inconcluso por não prever medidas de inclusão dos ex-escravizados e escravizadas no sistema social, sobretudo pelo fato da conquista ter sido resultado da luta dos quilombos, mas acabou seguindo para a dimensão parlamentar, o que evidencia os limites da ação institucional.


Assim, a formação do Estado brasileiro foi ancorada em elementos que favoreceram a manutenção de privilégios ainda em tempos de colônia. O trabalho livre, por conseguinte, que substituiu o trabalho escravo, preservou instrumentos de dominação, privilégios e modos de exploração, dando continuidade à dinâmica opressiva sobre a população escravizada. Da mesma forma que a transição do modo escravista para o capitalismo gerou um capitalismo dependente, subalterno às dinâmicas do capitalismo global.


Dessa forma, é possível perceber que o racismo foi arcabouço para todo o processo construtivo do Estado brasileiro, acompanhando-o até em tempos democráticos, o qual tem como o capitalismo o grande fomentador e beneficiário da ideologia racista.


Nesse sentido, compreender o Racismo como estrutural e estruturante faz-se não somente necessário em tempos de compreensão do fenômeno, mas, sobretudo, é imprescindível para o seu enfrentamento. Daí a proposta de combate contra o racismo através de suas principais estruturas, como no processo de um prédio a ser demolido, por implosão controlada, metáfora esta utilizada neste artigo.


Muitos foram, e ainda são, os elementos fundamentais e as justificativas para a perpetuação e manutenção do racismo ao longo dos anos. Religiosos, biólogos, cientistas políticos e sociais, entre outros, cujos trabalhos e pesquisas serviram de subsídios para a fomentação do racismo enquanto sistema estrutural e que ecoam até tempos atuais.


Sendo a exploração de territórios a causa principal para subjugação de povos negros através do trabalho escravo, a primeira oficialização da prática foi através da bula papal chamada Dum Diversas dirigida a D. Afonso V de Portugal e publicada em 18 de junho de 1452 pelo Papa Nicolau V. Nela, o Papa afirma::


(…) nós lhe concedemos, por estes presentes documentos, com nossa Autoridade Apostólica, plena e livre permissão de invadir, buscar, capturar e subjugar os sarracenos e pagãos e quaisquer outros incrédulos e inimigos de Cristo, onde quer que estejam, como também seus reinos, ducados, condados, principados e outras propriedades (…) e reduzir suas pessoas à perpétua escravidão, e apropriar e converter em seu uso e proveito e de seus sucessores, os reis de Portugal, em perpétuo, os supramencionados reinos, ducados, condados, principados e outras propriedades, possessões e bens semelhantes (…).


Dessa forma, submeter povos considerados propensos à escravidão ganha considerável legalidade e destaque com a expansão portuguesa. Mas racismo não estava atrelado somente ao trabalho escravo. Além da religião, a ciência também esteve a serviço de justificativas para o racismo, a exemplo da Eugenia, ou simplesmente “Racismo científico”.


Um nome brasileiro conhecido nessa perspectiva foi Nina Rodrigues, final do século XIX até a metade do século XX, cujos estudos influenciados pelo Positivismo apontam para considerar o indivíduo negro com processos evolutivos diferenciados, sugerindo inclusive uma codificação penal específica, através da “racialização do código penal”, considerando-os “atavicamente violento”, o que levaria a comportamentos e valores morais diferenciados.

A ciência eugenista sob influência mútua junto ao Estado e a sua própria constituição, servindo assim de justificativa para hierarquias sociais e modos de exploração.


Outro aspecto a alimentar o racismo brasileiro foi a influência da obra de Gilberto Freyre, através do seu conceito de equilíbrio de antagonismos, apresentado em seu livro Casa-grande & Senzala. De acordo com OLIVEIRA, D. (2017),


Na proposta de Freyre, o lugar para o equilíbrio de antagonismos é o núcleo da família patriarcal, portanto o espaço privado. Por essa razão, as relações de cunho pessoal, privado e íntimo – inclusive as sexuais – são vistas por Freyre como espaços de equilíbrio dos antagonismos existentes, principalmente entre senhor e escravo.


Esse conceito de “equilíbrio de antagonismos” perpetua nas relações estruturadas pelo racismo até tempos atuais. Ao passo que as práticas racistas em muitos casos são consideradas como ações individualizadas, personificadas, ou seja, pertencentes ao âmbito privada da relação entre as partes; e não como sendo algo resultado de um sistema cuja lógica de opressão perpassa todas as esferas sociais, inclusive nos ambientes privados.


Da mesma forma em que estudos a respeito da lógica sistêmica do racismo muitas vezes encontram dificuldade para adentrar nos espaços e pautas políticas legislativas, pelo fato dos casos de práticas racistas serem associadas a dinâmicas de caráter individual e privado, e não uma questão da sociedade como um todo.



O Racismo estrutural brasileiro


Um sistema de opressão em que as relações econômicas e socioculturais são pautadas pela subjugação racial, eis o racismo estrutural brasileiro. Neste ambiente, os fenômenos racistas são tidos como pertencentes ao funcionamento normal da sociedade e as opressões são naturalizadas. Para BERSANI (2017, p.89),


A perspectiva traçada pelo racismo estrutural confere a possibilidade de se tratar o racismo pela raiz e de modo global, atentando-se à sua essência e às peculiaridades desde a formação do país, ou seja, da mesma maneira pela qual ele tem se revelado, significado e ressignificado ao longo da história do Brasil. É enxerga-lo não apenas pela forma como ele se mostra, mas sim pelo que ele é.


A noção de racismo estrutural aponta para que é algo normal, ou seja, constitui as relações no seu padrão de normalidade e as dimensões da economia, política e as diversas subjetividades da sociedade são constituídas dentro desse sistema, promovendo assim, a manutenção de privilégios e modos de produção e exploração.


E no que se refere à sociedade brasileira, a relutância em reconhecer o racismo como estrutural e estruturante dá-se justamente ao fato de que para tal será preciso reconhecer privilégios sistemáticos da branquitude.


Uma vez que não somente o Estado legislativo seja composto prioritariamente por homens brancos; assim como a concentração de riquezas está na população não-negra, da mesma forma que o acesso ao ensino de qualidade e nível superior, ainda é realidade para poucos negros.



As bases do grande edifício chamado Racismo


A metáfora de fazer do Racismo estrutural como arranha-céus dá-se, sobretudo, pelo fato de que tal sistema “é o pilar de sustentação do poder global, do imperialismo, dos processos de neocolonização e da concentração de riquezas” (OLIVEIRA, 2017).


A considerar que seja um grande edifício, é preciso identificar as suas estruturas principais, compreendendo as partes que o compõem, para assim efetivar o processo de implosão. De acordo com informações técnicas:


Demolição por implosão é uma técnica que faz uso de explosivos para demolir estruturas de forma rápida e controlada. Uma demolição por implosão pode ser considerada como uma explosão controlada, afinal utiliza a quantidade de explosivos necessária de acordo com os procedimentos e cálculos de engenharia. A demolição por implosão é monitorada através de sismógrafos para comprovar a segurança do entrono. A demolição por implosão é controlada através de disparos sincronizados e localizados em pontos certos da estrutura, com o intuito de enfraquecê-la e permitir que a estrutura venha abaixo controladamente.


Sendo assim, suponhamos que na cobertura do prédio, junto às antenas, estão as manifestações comuns e corriqueiras de discriminação de raça, como casos de ofensas e injúria racial, que têm grande repercussão nas redes sociais e que geram intensa comoção e manifestações de apoio, mas que passado algum tempo, logo são esquecidos. Podemos compreendê-las como estruturas mais superficiais do racismo, no alto do edifício. Também no alto, situações constrangedoras de pessoas negras, como abordagens de policiais, restrição em portas de agências bancárias.


Logo abaixo, nos andares mais altos, práticas bastante recorrentes no sistema judiciário, com casos de prisões de homens negros e pobres sem prerrogativas ou provas consistentes, como o caso do jovem Rafael Braga, preso durante as manifestações de 2013 por portar uma garrafa de detergente, visto como potencial criminoso. Relações cujas explicações podem ser compreendidas através do legado de Nina Rodrigues por exemplo.


Na mesma altura estão os altos números de desemprego ou subemprego da população negra. Somada aos em situação de vulnerabilidade nas ruas e vítimas do vício de drogas, que seguindo o pensamento eugenista e higienista, são vistos como criminosos e lícitos de perseguição, afim de “limpar” a sociedade. Um exemplo recente é o caso na Cracolândia, em que a prefeitura autorizou a invasão no local, sob o uso da violência, com o intuito de desocupar a área.


Mais próximo da base, nos andares mais baixos, as instituições de ensino e a precariedade; apesar da implementação da Lei 10.039, a dificuldade de aplicabilidade das práticas pedagógicas ainda é uma realidade.


Na mesma altura, estão as universidades públicas e a concentração de produção de conhecimento, sobretudo, nos estudantes e pesquisadores não-negros, e ainda persistência na implementação do sistema de cotas em algumas delas, a exemplo da Universidade de São Paulo, que enfrente uma série de manifestações para que aceite por completo a aderência ao sistema de cotas de negros e indígenas.


Nos andares térreos, já constituindo parte das bases encontramos estruturas do Estado, organizações legislativas, assim como o sistema judiciário, que em sua maioria é composto por homens brancos. Por fim, em sua base, estão as relações econômicas sob o sistema capitalista, juntamente com o modo de produção neoliberal.


O fato é que esses sistemas e conjunto de práticas não estão isolados, apesar de estarem em “andares” diferentes, mantem entre si diversas ligações e interdependências. As estruturas não são independentes uma das outras, o que leva a compreender que o racismo estrutural é uma conjuntura com sistemas interligados e que se retroalimentam. Da mesma forma, as práticas mais superficiais não são menos importantes, elas apenas revelam um dos tantos aspectos do racismo enquanto sistema de opressão.


Portanto, para enfrentar, demolir tais estruturas é preciso não somente avançar sobre a base, mas em pontos específicos e estratégicos, de forma sincronizada. Ou seja, as práticas de enfrentamento precisam estar alinhadas na perspectiva da compreensão do racismo enquanto sistema estrutural e estruturante das relações socioculturais e, por isso, está presente em todos os âmbitos da sociedade.



Implodir é preciso! – enfrentamento e demolição


Assim como o racismo é um sistema de opressão de longas datas, são também muitas as resistências e formas de combate. Desde os agrupamentos quilombolas, cuja organização interna era extremamente sofisticada, passando pelos movimentos de grupos militantes, até os atuais coletivos de juventude negra, atuando, sobretudo, nos ambientes virtuais, disputando narrativas e reconstruindo nossa história.


No entanto, como todo movimento não há uma unidade, a luta antirracista não haveria de ser diferente, portanto compreendemos como sendo multifacetada, uma vez que são diversas as formas de combate ao racismo.


Sendo aqui comparado a um edifício, a proposta para o seu enfrentamento é atingir às suas bases de forma estratégica, não necessariamente uniforme, mas numa espécie de sincronização, assim como numa demolição através da implosão com o uso de bombas localizadas em pontos específicos da construção.


Muitas são as práticas na tentativa de combate ao racismo; ao passo que o enfrentamento sugere disputas de espaços e narrativas. É preciso reconstruir as narrativas da população negra, a qual teve sua história silenciada e apagada.


Tal enfrentamento há de ocorrer numa espécie de sincronia, ou seja, sob a compreensão e constante vigilância para que fenômenos vinculados à práticas racistas não sejam associados a anomalias ou desvio da normalidade; mas sim componentes do sistema de opressão que é o racismo estrutural.


Disputa de narrativas nos espaços políticos, através de grupos de militância, agrupamentos quilombolas, organizações não-governamentais, associação de moradores, juventude organizada, grupos artísticos, mídia especializada, ativistas e influenciadores digitais; todos carregam igual responsabilidade para com a abordagem e disseminação do entendimento do racismo estrutural, o qual ocupa todas as esferas socioculturais, políticas e econômicas da sociedade.



A compreensão do racismo como estrutural e estruturante não só é algo importante e imprescindível, como urgente. As diversas atuações nos campos da sociedade têm relevante papel no processo de enfrentamento do racismo, uma vez que o mesmo constitui todas as relações socioculturais, econômicas e políticas.


As possibilidades para tal implosão são muitas e seguimos em processo de descobertas. O que se tem de certeza é de que é preciso demolir, ou melhor, combater o racismo.


Um mecanismo opressor tão sofisticado requer estratégias à altura, por isso, se faz necessário dar continuidade a estudos e pesquisas acerca dos fenômenos, estruturas e conjunturas que envolvem as questões raciais no Brasil.


REFERÊNCIAS

  • BERSANI, H. Racismo, trabalho e estruturas de poder no Brasil in: A luta contra o racismo no Brasil / org. Dennis de Oliveira; Cláudia Rosalina Adão ... [et al.]. – São Paulo: Edições Forum, 2017;

  • BRITO, J.de. Técnicas de Demolição de Edifícios Correntes, Mestrado em Construção, Tecnologia da Construção de Edifícios, IST

  • GORENDER, Jacob. O escravismo colonial. São Paulo: Perseu Abramo, 2010;

  • MOURA, C. Dialética Radical do Brasil Negro. São Paulo: Anita, 1994;

  • OLIVEIRA, D. Racismo, mídia e esquerdas in: revista Le Monde Diplomatique n. 117. Abril, 2017;

  • SANTOS, G. A. A invenção do ser negro. São Paulo; Educ, 2002




Artigo como pré-requisito de aprovação na disciplina O Negro na sociedade de classes brasileira, ministrada pelo prof. Dennis de Oliveira do curso de pós-graduação lato sensu Educação, Cultura e Relações Étnico-raciais do Centro de Estudos em Comunicação e Cultura (CELACC) da Universidade de São Paulo (USP).

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